Pular para o conteúdo principal

PORTUGUÊS PRÁTICO

Quando criança, na escola, sempre teve problemas. Gazeador era o seu vulgo, não se importava em cabular as aulas para satisfazer seus impulsos de adolescente. Não tinha interesse nas coisas do conhecimento, mas nas coisas práticas da vida, principalmente, as que aguçavam e satisfaziam seus desejos.

As aulas de Português era uma de suas favoritas... para gazear. Por isso, foi se tornando um analfabeto funcional, sabendo só o necessário para manter uma comunicação, incapaz de entender a profundidade de um vocábulo qualquer, já que só o repetia.

A sua vida corria serelepe, tantas eram as situações em que se metia. Numa dessas, o rebuliço foi tamanho, que teve que sumir, mudar de endereço. Foi aí então, que a sua vida mudou. Novo naquele pedaço de fim de mundo, ele logo tratou de se portar como douto. Sempre solícito, agradável e de fala corrente, foi conquistando a simpatia dos vizinhos. Do seu passado, só ele sabia. Agora era um rapazote faceiro, tanto que atraiu uns olhares capciosos, aos quais resistiu até quando pôde. Uma vez que o seu passado recente dizia que não resistiria por muito tempo, e foi o que aconteceu. Tratou de saber a quem pertencia aqueles olhares, descobriu, em detalhes, a vida da sua futura desdita. Graça era como se chamava, vivia amasiada com um sujeito que trabalhava à noite como vigilante, relação de pouco tempo. Todas essas informações não foram difíceis de conseguir, pois a fama da ditosa corria boca em boca pelas redondezas. Diante de sua descoberta, o novo deu vez ao velho rapaz, e o instinto falou  mais alto, afinal, desse lado prático tudo sabia.

           Passou o dia preparando mentalmente a cena, não podia esquecer nenhum detalhe, apesar de estar tudo encaminhado. Deu um trato na estampa e foi ter com aquela graça de pessoa. Quando ela o viu, sorriu faceira, dando brecha para uma aproximação mais arrojada. Os olhares se cruzaram, palavras codificadas foram trocadas e o acerto para mais tarde fora feito. Você, caro leitor, pode estar se perguntando como se entenderam tão rápido, digo que nesses casos, quando só o desejo fala, não se precisa de muitas palavras.

À noite, o companheiro de Graça saiu para cumprir o seu quarto de hora. Mal sumiu rua abaixo, ela foi trocar os seus trajes comportados por algo que instigasse mais o apetite, já visível em seus enrubescidos seios... da face. Não tardou e João surgiu todo fagueiro à porta da Graça divinal. Vendo-a ali, na sua frente, de roupas tão apropriadas para a ocasião, quase desnuda, sentiu um fogo abrasador a envolvê-lo. Então, pôs em prática todas as preposições que aprendera até ali, descobrindo e preenchendo os hiatos de Graça, fazendo da língua um dos meios de também se dar bem na vida. Terminada mais uma lição na sua existência prática, despediu-se daquela que ministrara prazeroso aprendizado.

Viver em cortiço é como estar sempre em manchete, vida particular se torna pública. A noite de Graça sairia cara. A notícia já corria desde os primeiros raios da manhã, era só no que falavam, enquanto os personagens dormiam o sono dos justos. Mas o burburinho tinha endereço certo, os ouvidos do vigilante, este, também dormia um sono justo, afinal, deu duro a noite toda.

Já corria as horas da tarde, quando João acordou. Graça já fazia o almoço para o companheiro que descansava, sem dar conta ainda do que se passara. Porém, a novidade, como moça caprichosa, que sabedora do seu poder, desfila petulante pela rua, fica à espera daquele que será o seu brinquedo de manipulação. O cheiro do tempero de sua companheira despertou Carlos do seu sono de justo. Levantou-se, foi ao banheiro para fazer o seu asseio e, em seguida, sentou-se à mesa para comer uma das coisas boas que ela sabia fazer. Depois de satisfeito, foi andar pelas redondezas a fim de relaxar, já que era o seu dia de folga. Encontrou os amigos da diversão diária, para os quais tudo é pretexto para tomar uma gelada. Sentou-se com eles e participou da conversa fiada, até que aquela moça caprichosa se insinuou na fala de um dos conhecidos. Foi se chegando de mansinho, seduzindo o ouvido, até aquele instante, indiferente. Porém, quando foi tocado, arrepiou-se, não de prazer, só de espanto. Ouviu como quem ouve a chamada do professor na escola, atentamente. Guardou para si, o que ouviu e o que sentiu. Carlos, então, tomou mais uma e se despediu daquela roda de escárnio, rumando para casa, pensativo.

João, no restante da tarde, cuidara de pôr os seus afazeres em dia, afinal, nem só de pulsão vive o homem, existe também o labor. Graça recebeu seu companheiro com estranheza, pois, apesar da sua fama no bairro, nunca o vira tão introspectivo. Por precaução, resolveu não o indagar, melhor deixá-lo a sós com os seus pensamentos.

Nesta noite, Graça servia o seu banquete ao amante-mor, este, não comia como de costume, com avidez, pois a moça caprichosa o enfeitiçara. Queria não ter se deixado fisgar pelo ouvido, mas dessa vez foi inevitável, ela conseguiu o seu intento. Desde que voltou da rua, manteve-se calado para não entregar a traição, já que tinha receios das consequências geradas e aquele não era o momento.

Eu, Tirésias, que nada enxergo, mas a tudo vejo. Digo que Carlos colava cada recorte da memória que lhe remetia ao mesmo assunto exposto nessa tarde, quando esteve com os colegas. Como um amante de cinema, quando encontra uma película antiga despedaçada. Na ânsia de assisti-la e saber qual história retrata, vai emendando quadro a quadro, até montar o filme por completo, na sequência exata dos fatos. Tudo isso em surdina na sua mente. Graça e Carlos deitaram, mas só um dormiu nessa noite.

O dia amanheceu anunciando tempestade. Mas o tempo dos afazeres sociais urge, ao contrário das lavouras, não depende da dádiva dos céus para acontecer. Então, os homens seguiram cada um para o seu trabalho. Carlos só seguiria à noite, como sempre, porém, hoje, decidiu ir ao centro da cidade e de lá, seguir para o seu posto. Atitude que pôs Graça em alerta, afinal, o que não é de costume, causa estranheza em qualquer um. Despediu-se com uma normalidade dissimulada, entrou, e ele rumou para a cidade. Os amigos, desde o dia anterior, aguardavam a tragédia anunciada, mas sem tanta ansiedade, como quem já vira a esse filme do tipo pastelão romântico, posto que conheciam o enredo de cor e salteado.

João, o novo caso da graciosa, era diferente dos anteriores, morava na mesma rua. O que o tornava uma ameaça real e constante, enquanto que os outros não passaram de insinuações maldosas dos amigos, já que nunca foram vistos por ali, só descritos nos falatórios alheios. Esse era o detalhe, a peripécia que mudaria o antigo enredo. Eu lhes digo, caros leitores, por muito pouco, outras tragédias ocorreram.

A alcoviteira de amores proibidos chegou convidativa, desafiando os amantes a se unirem mais uma vez. Receosos pelos acontecimentos do dia, hesitaram, porém aquela os convenceu, afinal, não podiam desperdiçar tamanho ardor que sentiam. Já dentro do recinto, foi logo experimentando os predicativos dela e de seus objetos de desejo, rasgando verbos indecentes, como assim também se mostravam os atos ali praticados. Mas a lição de hoje estava incompleta, ainda no transcorrer dela, eis que surge um aluno mais sabido e com alguns estampidos, em um português prático, à aula, pôs um ponto final.

Criado em: 04/07/2020 Autor: Flavyann Di Flaff


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

DAS BASES

  Como em um círculo vicioso, neste país, em todo sufrágio, percebemos, de forma descarada, a atuante presença do mirífico corporativismo das necessidades individuais. Elas subjugam, subvertem e relegam a utilidade coletiva das instituições a meros vínculos empregatícios, como nos tempos de outrora. Criado em : 06/10/2019 Autor : Flavyann Di Flaff

TOLICE

  Um dia, customizaram Deus, e conhecemos uma divindade submissa aos muitos e distintos caprichos de cada um dos seres humanos. Em seguida, customizaram a razão, e criaram o que não existia em seus pressupostos: a unanimidade. Então, ao defini-la, Nelson Rodrigues bem traduziu toda essa adaptação.   Criado em : 24/06/2021 Autor: Flavyann Di Flaff

O MUNDO PERFEITO

  O mundo tá em franca decadência! Tem religioso, celerado enrustido, prescrevendo penitência a quem se confessa invertido.   Tem conservador progressista e progressista conservador. Corolário de um teatro congressista pra engabelar o incauto eleitor.   Segue o bonde sem freio desse mundo ilusório. O que é determinado pelo meio é certamente provisório.   Vende o pão assado no forno, que há pouco ardia, o cidadão, pelo capitalismo, alienado, pra obter o seu pão de cada dia.   O mundo tá perdido! Tem legalista contraventor e contraventor legalista. Assim, o cidadão é iludido até onde alcança a vista.   Esse é o mundo perfeito para qualquer salvador que pretende ser eleito. Um mundo repleto de discursos “olho por olho, dente por dente”, que atendem a externos impulsos por uma igualdade aparente.   Criado em : 05/02/2024 Autor : Flavyann Di Flaff