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ASSASSINATO DO PORTUGUÊS

Chegara com a cara e a coragem, coisas que em nada lhe ajudaram, pois não chegara a lugar nenhum no espaço socioeconômico. Passados os anos, conseguiu visibilidade entre os seus futuros pares. O idioma o ajudou, já que eram línguas irmãs, não siamesas, porém semelhantes. Se bem que lá na sua terrinha, não fora um bom aprendiz, o que conseguiu, deu para o gasto.

Com o trabalho que conquistou, conseguiu se instalar em um bairro na periferia que ficava a poucas horas de onde trabalhava. Por sua boa feição e carisma, ficou conhecido como galanteador. Uma fama que lhe abriu portas mas trouxe desafetos, os quais desconhecia.

Sempre que podia, quando retornava do trabalho, tomava uma caipirinha com os vizinhos da rua. Todos gostavam de sua companhia e de sua fala estranha, ainda mais por cometer alguns erros gritantes em suas falas, que tanto os faziam rir. Levava tudo na esportiva, pois também gostava daquelas companhias.

Certo dia, engraçou-se da vizinha, uma morena linda, chamada Rosa. Depois dela, seus dias não foram mais os mesmos. Seus olhos e seus pensamentos eram só para ela. Mas nem só de pétalas é feita uma flor, há de ter alguns espinhos, e Rosa os tinha, todos em forma de uma relação conturbada com um rapaz. O que deixou Quincas triste, porém, ainda desejoso por ela. Tanto que fez, que a morena em um desses momentos de raiva, para dar o troco, aceitou o assédio dele. Aí, não deu outra, juntou-se o desejo de um com a vingança do outro e o enlace se deu naquela mesma noite. Mal amanheceu o dia e todos já sabiam do acontecido. Ambos eram de uma satisfação contagiante. Ele por ter conquistado Rosa e ela por ter se vingado do seu companheiro bruto. A partir daí, era um tal de ir vir na vizinha, que era impossível dos outros vizinhos não repararem.

Quincas mal chegava e se sentava à mesa com os colegas, logo se levantava dizendo que iria ali na vizinha, o que todos retrucavam dizendo: − Não é na vizinha, Quincas! Mas sim, vou à vizinha. Olha o erro! Quincas sorria e apressava o passo, pois a felicidade já se estampava no rosto e o esperava no quarto.

Assim o Quincas levava a vida, de casa para o trabalho, deste para a reunião com os colegas e em seguida, ir na vizinha. Até que um dia, da rosa renasceu o espinho. Sem nada perceber, Quincas cumpria a sua feliz rotina. Quando chegou na vizinha, ela estava como de costume, linda, cheirosa e solícita. Mal sabia ele, que, para ela, aquela seria a noite da despedida. Consumado o ato, ela hesitou e nada revelou. Quincas, feliz da vida, saiu como se amanhã tudo se repetisse, nem percebeu que um estranho o observava com olhos de fogo.

A noite fora violenta, parecia que um vendaval passara pelo jardim e abalara a bela flor. Todos perceberam, mas silenciaram a curiosidade... até Quincas chegar para cumprir o seu agradável costume. Quando, mais uma vez, levantou-se para ir na vizinha, todos, em uníssono, pediram que deixasse para amanhã, pois Rosa se mostrou indisposta, com ares de cansaço, esse relato não o convenceu, pelo contrário, o fez mudar apenas de estado, de feliz para preocupado. Então, não se conteve e foi até à casa de Rosa, porém ela não estava lá. Inquietou-se e resolveu entrar em sua casa, tomar um banho para esfriar a cabeça, que já estava a pensar mil situações, todas elas, desagradáveis. Sabia que não dormiria naquela noite, então, decidiu sentar na entrada de sua casa e ver se Rosa chegava. Entretanto, naquela noite, ela não viria, e o velar de Quincas seria em vão. Os colegas, por curiosidade mais do que por companhia, permaneceram por um tempo a conversar com ele, e vencidos pelo sono, foram para suas casas. O que, felizmente, motivou-o a fazer o mesmo, apesar de querer permanecer em vigília.

O dia amanheceu nublado, Quincas quase não se levantava para ir ao trabalho, mas não podia faltar, sempre fora fiel à empresa. Seguiu pensativo, querendo, através de sua mente, descobrir o que se passara com Rosa. Enquanto cumpria o seu horário de serviço, lá na rua, Rosa chegava toda prosa, como se nada de diferente tivesse acontecido. Cumprimentou a todos, distribuindo aquele dadivoso sorriso, no rosto as marcas do vendaval já não estavam visíveis, só restavam em sua alma, coisa que só ela sabia. Entrou em sua casa e arrumou o recinto, deixando-o no capricho. O que se passou na noite anterior, ficou guardado consigo, talvez ninguém venha a saber, nem mesmo o Quincas. Mas naquele instante, o seu pensamento nem sequer sugerira a sua figura, estava absorto, vagando em confabulações vãs.

A noite chegou e Quincas mal parou para se reunir com os colegas, já passou direto para casa, na certeza de reencontrar a flor arrancada de seu jardim. Assim que se aproximou de sua residência, dirigiu o olhar para a de Rosa, viu as janelas abertas e um vulto lá dentro. O coração acelerou, quase teve um ataque, mas se controlou e foi ter com aquela que mandava em seus sentimentos. Rosa achava-se envolta nos afazeres domésticos, nem percebeu a presença dele. Este, hesitou, temeroso pela reação dela. Respirou fundo, pensou no que falar e assim disse: − Boa noite, Rosa! Ao ouvir o seu nome proferido por tão conhecida voz, virou-se com ar de feliz surpresa, apesar de não esperar vê-lo naquela noite. O clima naquele ambiente, de repente, deu sinais de pesar, e logo perceberam, o que os levou a sentar e conversar como de costume. Mesmo sabendo que, em cada cabeça, um pensamento distinto fizera morada.

Durante a conversa, os olhares se cruzaram, embora só um assim o desejasse. Ela falou o necessário para aplacar a angústia de Quincas, que saiu dali com lisonjeira esperança. Porém, Rosa, sorriu ao lembrar que ele fora o tolo à custa de quem usou para se vingar do outro.

No dia seguinte, Quincas acordou cantarolando. Sinal de que a felicidade, novamente, inundava-lhe a alma. Aprontou-se e foi cumprir com sua rotina diária. À noite, quando chegou em casa, percebeu as luzes da casa vizinha apagadas, contudo um burburinho indiscreto ecoava pelas frestas das janelas. O seu rosto empalideceu, o arfar agitado fazia o seu peito soerguer-se. Não se conteve e decidiu dar um basta naquela dúvida cruel, que, agora, lhe consumia. Silenciosamente se aproximou da janela e pôs-se a escutar os sons que percorriam todo o interior da casa e se debruçavam, como a fazer chalaça de quem por ali passava. Afrontado, aguçou os ouvidos e conseguiu definir a quem pertencia uma das vozes sussurradas, não fora surpresa, já que na sua mente tudo se anteverá. Lembrou-se das suspeitas que Bentinho, um de seus colegas, lhe confidenciara acerca do sumiço repentino de Rosa, o que o deixou afogueado. Quantas noites desfrutaram juntos, todas repletas por trocas de carinhos, carícias e juras de amor. Como por feitiço, capricho ou por desdita, uma vez que não queria acreditar numa mudança rápida de sentimentos, estava tudo ali, jogado na lama dos julgamentos alheios.

Sua mente e seus sentimentos entraram em alvoroço, que debalde tentou conter. Deixou-se, então, ser tomado por aquele sentimento oposto ao amor que sentia e em fera se transformou. Num impulso, viu-se dentro da casa a caminho do quarto, que em outros tempos, era o seu ninho de amor. Quanto mais se aproximava, mais os sussurros evidenciavam as indecências ali praticadas. Cego, atirou-se sobre o corpo desnudo, que, estando de costas, não esboçara nenhuma reação. Só sentira o peso e a força de socos, sem nada entender, para, em seguida, responder com gritos de socorro. O companheiro, que há pouco se ausentara para buscar uma bebida, já atendeu ao agônico chamado de arma em punho. Quincas, irracional, não se deu conta do que estava por acontecer e continuou desferindo, sem cessar, os socos de desforra. Gerando a reação mortal do seu desconhecido desafeto. Dois disparos foram feitos, o suficiente para acabar com o sofrimento de ambos.

O dia amanheceu com a seguinte manchete nos jornais: ASSASSINARAM O PORTUGUÊS! Os colegas bem que o avisaram, mas, cego pela paixão, Joaquim não percebia o erro que cometia, quando dizia: vou na vizinha.

Criado em: 02/07/2020 Autor: Flavyann Di Flaff


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