Pular para o conteúdo principal

RECÉM-SEPARADOS

Seguiam os recém-separados como se nada tivesse mudado. Distribuíam afetos em forma de palavras recíprocas. Nos dias dos namorados, trocavam setas aos milhares, só comparável àquela chuva de flechas atiradas em campo de batalha medieval, fingiam ser o próprio cupido, quando da vez em que se conheceram. Nos tempos áureos do matrimônio, não se via tamanha sintonia e dedicação, tanto que, para seus desafetos de estimação, pessoas em comum, declamavam odes e distribuíam honrarias como forma de reconhecimento pelos serviços prestados. Renovavam os votos de fidelidade, seguindo, fielmente, como perdigueiro em busca da caça, os passos um do outro. Se namoravam, mostravam-se. Se viajavam, revelavam o roteiro em minúcias, só para satisfazer a curiosidade em comum. Dia sim, dia não, trocavam recadinhos recheados de um sútil sentimento, que só eles reconheciam, de tão ligados que eram um no outro. Enfim, diante de toda essa dedicação mútua, fruto de uma amizade cultivada com as mais puras intenções, esta máxima popular cai como uma luva: “Chumbo trocado não dói.”

Criado em: 06/06/2020 Autor: Flavyann Di Flaff


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

MUNDO SENSÍVEL

  E toda vez que eu via, ouvia, sorria, sorvia, sentia que vivia. Então, veio um sopro e a chama apagou.   Criado em : 17/01/2025 Autor : Flavyann Di Flaff

ILUSIONISTA DO AMOR

  O amante é um ilusionista que coloca a atenção do outro no ponto menos interessante, levando o ser amado a se encantar com o desinteressante. Quando o amante se vai, o amado age como um apostador, que, diante da iminência da perda, se desespera e tenta recuperar o que já foi. Mas, ao invés de encontrar o amor perdido, encontra apenas o reflexo de sua própria carência, como quem busca ouro em espelhos quebrados. Restando, então, ao amado, o desafio de enfrentar o vazio, reconhecer a ilusão e descobrir, enfim, que o verdadeiro amor começa, quando cessa a necessidade de iludir ou de ser iludido. Criado em : 14/11/2024 Autor : Flavyann Di Flaff

ALICIADORES DA REBELDIA

         Nasce no asfalto quente, entre gritos roucos e cartazes mal impressos, o suspiro inaugural de um movimento popular. É frágil, mas feroz feito chama acesa em palha seca. Ninguém lhe dá ouvidos; zombam de sua urgência, ignoram sua fome de justiça. É criança rebelde pulando cercas, derrubando muros com palavras – ferramentas de resistência.           Mas o tempo, esse velho sedutor, vai dando-lhe forma. E o que era sopro, vira vendaval. Ganha corpo, gente, força, rumo. A praça se enche. Os gritos, antes dispersos, agora têm coro, bandeira, ritmo, batida. E aí, justo aí, quando a verdade começa a doer nas vitrines do poder, surgem os abutres engravatados — partidos, siglas, aliados, palanques — com seus sorrisos de vitrine e suas promessas de espelho, instrumentalizam o movimento para capitalizar recursos e influência política, fazendo-o perder a essência.           Chegam mansos, como quem só...