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OLHOS DE METÁFORA

        O jardineiro, no seu labor diário, contempla o nascer e o morrer das plantas. Por anos a fio e por executar essa tarefa repetidamente, nunca teve um outro olhar para aquela sequência existencial do reino Plantae. Perdia, assim, oportunidades diárias de entender a vida de uma forma mais profunda, longe daquela habitual superficialidade em que vivia.
Certo dia, quando estava a exercer, mais uma vez, o seu automático labor, um passante cessou o passo e ficou a observar a cena, que, diante do metafórico olhar, acontecia. O jardineiro nada entendeu e prosseguiu na sua tarefa, afinal, queria terminá-la logo, para, em seguida, partir para outro jardim e, assim, ignorou o atento observador. Este lhe foi recíproco, pois o que prendia a atenção dele, não era o jardineiro, mas as frágeis flores que caíam, intermitentes, aos montes, dando mais trabalho e tirando o tal profissional do sério. 
O passante logo se lembrou de um grupo de crianças, que, longe dos pais, sentiam-se livres para cometerem as mais inimagináveis travessuras, e ali estava ocorrendo uma, brincar de pega-pega no horto, enquanto era feita a limpeza, desviando a atenção de quem mais precisava dela naquele momento. Doces eram os risos infantis, como prazeroso foi o de quem só observava a peripécia, deliciando-se com a nostalgia que ela lhe trouxera.
De repente, a cena já tomou outras nuances, da planta robusta, escorria uma seiva branca-cor-de-leite, ao mesmo tempo em que as flores caíam e feneciam ao solo arenoso. O andante, então, vislumbrou a imagem de um pai, que, por circunstâncias de uma vida Severina, não pôde alimentar tantas bocas famintas e, por isso, enterrava, diariamente, os seus frágeis rebentos, restando-lhe apenas chorar. Ato que contagiou aquele a quem tudo era significativo. 
Finda a sua rotina, o jardineiro segue o seu enfadonho rumo, pois já o fizera inúmeras vezes, não sem antes reparar na figura, agora melancólica, do espectador. Olhou-o, enquanto recolhia as suas ferramentas, e depois partiu. O andarilho também seguiu, não o repetitivo caminho do outro, mas rumos tomados ao acaso, todavia, quem os percorria, não era mais o mesmo de outrora, fora mudado pelas viagens que fez, através das cenas que imaginara minutos atrás.

Criado em: 16/05/2020 Autor: Flavyann Di Flaff

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