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O ALFA E O ÔMEGA

                                       

As crendices e religiosidades ainda não tinham chegado a seu mundo. Vivia alheio a essas coisas, desfrutando das experiências da vida, sem o peso moral das consequências por elas geradas. A naturalidade das coisas da vida não lhe impunha reflexões profundas, oriundas de uma babel de filosofias e ideologias inventadas para impor medos e limitações ao que recebera desde o nascimento.

Sem amarras maniqueístas, seguiu vivendo sem muito ferir ou ser ferido. Desfrutou de tudo que a sua infância e mocidade lhe proporcionaram. Porém, quando a idade da razão lhe bateu à porta, ficou sem reação. Paralisado, ouviu as inúmeras recomendações que a sociedade lhe impunha a partir de então. Assim, descobriu a angústia que seus pais omitiram, devido ao zelo em deixá-lo viver sem a percepção das amarras sociais. Começou a ter a noção de todo o fardo que os seus genitores carregaram até ali, só para que pudesse viver, plenamente, a liberdade com que se nasce. Contudo, ela nos é tirada e substituída por encargos cada vez mais sufocantes, limitadores das nossas capacidades individuais. Tudo em prol de uma homogeneização para um fácil controle. Foi assim que conheceu as inúmeras crendices e religiosidades pregadas como tábuas de salvação aos desesperados do mundo. Cético, não mergulhou de cabeça nesse mar abissal, nem precisou de tanto para perceber que as divindades são apenas referências de uma perfeição humanamente inalcançável, que, em nada, interferem em sua vida, como asseguram os preletores de ocasião. A metáfora disso está explícita no Redentor de braços abertos, apenas observando o inferno humano na babilônia 40 graus sob seus pés. Confirmando, assim, que a santa novena não paga a sua conta ao homem da venda, que não adianta nada, não enche a sua barriga faminta, subir de joelhos as santas escadarias.  Enfim, teve, de vez, a certeza de que ele, e só ele, é que poderá mudar a sua própria vida, caso se mova rumo a algum objetivo, senão, permanecendo na inércia gerada pelo desespero ante as necessidades fabricadas por uma sociedade excessivamente consumista e maniqueísta, sucumbirá e se transformará em só mais um número na estatística mortuária.

Criado em: 03/12/2021 Autor: Flavyann Di Flaff

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