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O AUTO DA MATRIX DEMOCRÁTICA

Neste teatro de libação, onde sempre estamos como plateia, os deuses saltimbancos riem, descaradamente, da nossa ingênua ignorância enquanto os adoramos sem distinção. Após a queda do outrora “normal” e com o surgimento do politicamente correto, o teatro de libação passou a ser considerado sacrossanto e cortês, por esse motivo, foi incorporado ao Estado democrático de direito.

De tempos em tempos, os deuses saltimbancos criavam seus jograis, sempre com um caráter didático e moralizante, abordando temas sobre a vida e os costumes dos demais cidadãos correligionários, uma vez que estes não podiam insurgir-se contra o que aqueles pregavam. Com aquele ardil, conseguiam naturalizar e internalizar o controle dessa massa em prol de uma embusteira polarização que, endossada por colaboradores do quarto império, fluía com facilidade há alguns anos.

Certo dia, nesse teatro, decidiram os deuses fazer algo nunca antes feito, com isso, iriam ficar avant-garde da história. Então, começaram a elaborar uma farsa com vários atos, algo impensado noutros tempos. O tema abordando, de forma séria e benéfica, o fim da imoralidade no seio da sofrida sociedade, será o ápice intervencionista da casta divina – subproduto da era do discurso politicamente correto. Para tanto, as divindades dos quatro impérios se encontraram e firmaram um acordo, possibilitando a realização plena dessa fantástica empreitada. Dado o aval, ficou decidido que o personagem principal do primeiro ato deverá ser quem estiver à frente do império executivo, a ele será atribuído o descaso com as contas do reino, tudo embasado por documentos oficiais, e em um rito sumário, perderá seu posto e seus direitos públicos. Porém, em um súbito acordo, estes serão preservados e ser-lhe-á dada uma remuneração pelos bons serviços prestados. A todo esse processo, será dado o rótulo conveniente de golpe, para que, assim, fomente o maniqueísmo já posto. Fim do primeiro ato.

Utilizando a máquina judiciária oficial, criarão uma força específica para dar credibilidade ao segundo ato cujos personagens principais serão aqueles que surrupiam o erário público. De cada um, será exposto as subvenções adquiridas, ilicitamente, sob a influência do cargo ocupado. Tudo isso será potencializado por uma exposição midiática massiva desses senhores do peculato, o que convencerá a massa de que o reino estará sendo passado a limpo. Fim do segundo ato.

A força constituída oficialmente será primordial para a continuidade da audaciosa empreitada. Neste terceiro ato, o personagem principal será aquele que já foi e de novo almeja ser. Como pretenso réu, será revelado o seu lado mal, as evidências deste serão corroboradas por um robusto calhamaço de provas testemunhais, conseguidas todas de “bom grado”, e em um longo “calvário” regado a uma manipulada execração pública, será condenado e perderá qualquer direito. Tendo a devida garantia de recuperá-los mais adiante, renascendo como a mítica fênix. Fim do terceiro ato.

A cobertura intensa pelos aparatos do quarto império levará a uma catarse nacional, esta induzirá todos a pensar que o reino, finalmente, sairá do real para o ideal. Tal qual o que prega o Sebastianismo, que a qualquer momento, o salvador surgirá para retomar o trono e restabelecer a glória do reino. Será envolto nesse misticismo que começará o quarto ato. Novamente, o problema da sucessão será evocado e a carcomida pergunta se fará: Quem será o novo rei? Os deuses saltimbancos conseguirão colocar, graças à estratégia da terra arrasada, uma das várias manobras políticas por eles utilizadas, um novo velho rei no trono. No panteão das opções serão incorporados os mais conhecidos e experimentados do grupo, sempre se referindo a todos como a nova política, o que convencerá de imediato a plebe. Rei posto, as promessas ficarão pelo caminho e tudo continuará como dantes no quartel de Abrantes. Fim do quarto ato.

Parecendo já caminhar para um provável fim, ainda haverá muito por acontecer, apesar do prenúncio de desmonte do cenário anteriormente criado. Sob esse forte indício e com os próprios deuses questionando a legalidade dos processos estabelecidos pela força especializada da máquina estatal de justiça, começará o quinto ato. Uma avalanche de questionamentos será enviada para o centro do mecanismo judiciário e, com isso, monocraticamente, a máquina será desmontada para o delírio velado e a censura explícita das divindades envolvidas. Assim, a plebe será induzida a pensar que um dos lados ganhará com esse ato injusto, enquanto aquelas rirão desta inocente ignorância. Não restará peça sobre peça do aparelho judiciário estatal, criado para suprir os interesses “nacionais”, até que ele só exista nos empoeirados anais da história. Fim do quinto ato.

A judicatura do carrasco-mor será questionada e esse será o mote do sexto ato. Depois de exercê-la com eficiência, ele será alçado a um posto na esfera real e tratado como herói, entretanto a sua permanência será curta e bastante questionada. Não por vias legais de fato, mas por veredas problemáticas, construídas por meios ilícitos, o que não foge aos padrões das manobras adotadas pelos deuses. Desligado de sua função, sairá de cena maculado, esta será a sua paga. O seu sonho de alçar um voo maior sucumbirá ante o sol inclemente da manipulação suprema, como no mito de Ícaro. Fim do sexto ato.

Questionada a autoridade do carrasco-mor, a farsa continuará a encantar o público, tanto que muitos acreditarão que a justiça enfim prevalecerá, apesar do subterfúgio utilizado. Assim começará o sétimo ato, no qual justiça feita é justiça complacente com os que a manipulam em benefício próprio. A autoridade daquele será julgada e condenada à suspeição, com isso, todo o arcabouço probatório contra aquele que foi e, novamente, deseja ser, perderá a valia. Tudo o que até aqui fora juntado nada mais valerá, todos os processos começarão do zero, seja para onde forem enviados, o que acarretará a prescrição e devolverá todos os direitos ao presumido réu, fazendo-o renascer como estabelecido anteriormente – o rito apoteótico prometido.

O quarto poder entrará em cena e com suas bravatas persuadirá o público a crer que se fez justiça, uma vez que o pretenso réu será inocentado e o parcial juiz condenado. Também espalhará aos quatro cantos do reino que o remido é o salvador tão desejado, que as dores de hoje cessarão quando este voltar à glória. Da mesma forma, convencerá a todos de que a fala do lado A esteve sempre coerente com a verdade, enquanto a do lado B esteve, permanentemente, apegada à mentira dos fatos. Fortalecendo, de novo, aquele clichê publicitário de que a esperança venceu o medo – artimanha maniqueísta. Com essa elegia própria das mitológicas sereias, concluir-se-á a grande farsa cíclica dos nossos venerados e ilibados políticos − os verdadeiros deuses saltimbancos −, e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

Criado em: 24/03/2021 Autor: Flavyann Di Flaff

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