Pular para o conteúdo principal

O TORTURADOR

Em um dia nublado, ela saiu comigo – companhia sempre incômoda – para cumprir com a rotina diária. Eu nada murmurava, apenas alguns ais saíam abafados da minha boca, enquanto ela me incomodava durante todo o percurso. E assim foi durante todo o transcorrer do dia.

Companhia que nunca desejei! Na verdade, nunca imaginei que teria o desgosto de conhecê-la e, muito menos, de conviver com ela. Mas tudo foi acontecendo lentamente, a ponto de não reconhecer os sinais de sua chegada. E quando chegou, foi de sola em minha vida!

Sem nada falar, aboletou-se no meu peito desiludido e fez estrago. Tanto, que até hoje ainda fere o meu peito de incertezas, inseguranças e de não-sei-mais-o-quê!

Insatisfeito por não merecer tal desagradável criatura, vou maquinando um desfecho certeiro para esse martírio. Determinado, saio à rua em busca de um profissional na arte de eliminar figuras indesejáveis. Andando por lugares frequentados por gente de toda espécie, acabo por ser abordado por um intermediário de alguém com a especialidade que procuro. A conversa é curta e precisa, fico aguardando o contato ser feito.

A referência bate com o profissional almejado e logo faço a oferta. Aguardo mais um pouco, até receber a resposta. Feito o acerto, retorno exultante do passeio urbano. Afinal, tive sorte duplamente, pois ela me deu uma inesperada folga e obtive êxito no que pretendia.

O dia D chegou! Arrumei-me e a levei para o “cheiro do queijo”. Estava tudo ocorrendo da forma planejada. Em um determinado ponto do trajeto, fomos abordados por um desconhecido, que logo nos avisou para não reagirmos. Apesar do incômodo que ela continuamente me causava, fiquei quieto, esperando o proceder do indivíduo, que pegou os meus pertences e, num movimento brusco, arrancou-a de mim e a levou junto consigo, sem nada dizer. Nesse instante, fingi-me abalado, tornando-me inapto a qualquer reação, ficando a observá-los até sumirem do meu campo de visão. Essa foi a atitude mais acertada que tive nessa minha existência.

No dia seguinte, no noticiário policial, vejo a reportagem sobre o ocorrido. Reconheci o meu discurso perfeito de vítima nas imagens, relatando os acontecimentos com dificuldade, sem deixar de visualizar o meu semblante – materialização perfeita da arte de representar. Passado esse momento de celebridade instantânea de uma das inúmeras mazelas sociais que nos acomete rotineiramente, uma indescritível sensação de alívio começa a me invadir, percebo a nobreza do meu último gesto de humanidade nesse instante. Cada pensamento e ação premeditados, geraram um desfecho que só me fez bem. Não tem porquê chorar “lágrimas de crocodilo”, afinal sempre estive com a razão.

Passado um mês da atitude mais acertada da minha vida, percebo, ao pé da porta de minha residência, um pedaço de papel dobrado. Depois de segundos de surpresa por tão inusitado fato, pego-o e o abro para ler, nele, em um curtíssimo parágrafo, o remente diz que a está fazendo sofrer as mesmas coisas a que fui submetido por ela. Entretanto, disse-me que não a matará, já que tal gesto misericordioso apenas a libertaria, fazendo-a renascer noutro ser; e concluiu, escrevendo a frase mais extraordinária que já li: Não se preocupe, enquanto estiver comigo, ela não o perturbará; assinando com um pseudônimo, no mínimo, inusitado, O Tortura a Dor.

Criado em: 28/08/2013 Autor: Flavyann Di Flaff


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

LOOP FARAÔNICO

  De um sonho decifrado ao pesadelo parafraseado. A capa que veste como uma luva se chama representatividade, e a muitos engana, porque a vista turva. Ao se tornar conveniente, perde toda humanidade. Os sete anos de fartura e os de miséria, antes, providência pedagógica, hoje mensagem ideológica, tornando o que era sério em pilhéria. A fartura e a miséria se prolongam, como em uma eterna praga sem nunca ter uma solução na boca de representantes que valem nada. O Divino dá a solução, e esses homens nada fazem, deixando o povo perecer num infinito sofrer, pois, basta representar, para fortunas obterem. E, assim, de dois em dois anos, os sete se repetem, como num loop infinito de fartura de enganos.   Criado em : 1/6/2025 Autor : Flavyann Di Flaff

ILUSIONISTA DO AMOR

  O amante é um ilusionista que coloca a atenção do outro no ponto menos interessante, levando o ser amado a se encantar com o desinteressante. Quando o amante se vai, o amado age como um apostador, que, diante da iminência da perda, se desespera e tenta recuperar o que já foi. Mas, ao invés de encontrar o amor perdido, encontra apenas o reflexo de sua própria carência, como quem busca ouro em espelhos quebrados. Restando, então, ao amado, o desafio de enfrentar o vazio, reconhecer a ilusão e descobrir, enfim, que o verdadeiro amor começa, quando cessa a necessidade de iludir ou de ser iludido. Criado em : 14/11/2024 Autor : Flavyann Di Flaff

O JOGO DA VIDA

O jogo da vida é avaliado sob quatro perspectivas: a de quem já jogou e ganhou e desfruta da vitória, a de quem acabou de entrar, a de quem está jogando e a de quem jogou, perdeu e tem que decidir se desiste ou segue jogando. Quem jogou e ganhou, desfruta os louros da vitória, por isso pode assumir a postura que mais lhe convier diante da vida. Quem acabou de entrar no jogo, chega cheio de esperança e expectativas, que logo podem ser confirmadas ou frustradas, levando-o a ser derrotado ou a pedir para sair, permanecendo à margem, impotente diante da vida. Quem está jogando, sente a pressão da competição e, por isso, não se deixa levar por comentários de quem só está na arquibancada da vida, sem coragem de lutar. Quem jogou e perdeu, sente todo o peso das cobranças sociais pelo fracasso, por isso não se permite o luxo de desistir, pois sabe que tem que continuar jogando, seja por revolta, seja para se manter vivo nessa eterna disputa. Criado em: 20/11/2022 Autor: Flavyann Di Flaff