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Mostrando postagens de agosto, 2025

REFORMA GERAL E IRRESTRITA

  A política de um país não se constrói apenas nas instâncias de poder, mas também na forma como a população reage e se posiciona diante dela. Em sociedades marcadas pelo clientelismo, cria-se uma engrenagem perversa em que governantes e governados se retroalimentam: de um lado, os políticos oferecem favores, cargos e benefícios particulares; de outro, a população, por conveniência, comodidade ou sobrevivência, aceita e perpetua esse sistema, ainda que critique em público seus desmandos. Esse paradoxo revela-se na figura do "político de estimação", já que muitos cidadãos, mesmo conscientes da corrupção ou do abuso de poder, optam por relativizar os erros de quem os representa, defendendo-o como se fosse um parente ou amigo íntimo. Tal postura enfraquece o debate público, reduz a política a rivalidades passionais e mina a construção de um Estado verdadeiramente republicano, no qual o interesse coletivo prevalece sobre os vínculos pessoais. Assim, não basta denunciar o corp...

A FAMÍLIA DA NOVA ERA

  Carregamos no peito a marca da família pós-moderna, um mosaico de rostos, de afetos interrompidos, de lares que não sabem ser morada inteira. O que antes era chão firme, raiz e abrigo, hoje se faz corredor de portas, que se abrem e se fecham depressa demais. No lugar da continuidade, a transitoriedade; no lugar da certeza, o improviso. Crescemos, assim, em territórios que mais parecem paisagens em movimento, onde o lar já não garante abrigo, apenas passagem. Entre os laços frágeis, aprendemos cedo que o “nós” pode dissolver-se em “eus” solitários, que a mesa partilhada já não é necessariamente partilha, mas coexistência apressada. A lógica do instante, do consumo e do desejo imediato se infiltra nas relações, e cada um carrega sua própria bússola, mesmo que isso signifique perder o norte comum. E as crianças, os jovens, esses seres ainda em busca de chão, muitas vezes, descobrem-se órfãos de pertencimento dentro de casas cheias. Eles são convidados a habitar fronteiras móveis...

AUTORREFLEXO

  Carregamos, dentro de nós, corredores escuros, cheios de portas trancadas. Cada porta guarda um segredo, uma fraqueza, uma sombra que não ousamos mostrar. Passamos a vida fabricando chaves falsas, máscaras bem polidas, discursos de virtude para que ninguém perceba o que escondemos. E quando o outro tropeça, justamente, no abismo que tememos em nós, não suportamos. O erro dele é o reflexo que tentamos apagar do espelho. Sua queda denuncia a nossa fragilidade. Então, erguemos a voz, apontamos o dedo, transformamos o outro em réu. Condenamos, não porque ele é pior, mas porque ousou expor aquilo que enterramos dentro de nós. Assim, a condenação vira cortina. Gritamos contra a falha alheia para silenciar a nossa própria. Ridicularizamos para distrair os olhares. Quanto mais severos somos com o outro, mais confessamos — sem perceber — a luta surda que travamos contra nós mesmos. No fundo, tudo isso ocorre, porque sabemos que cada pedra lançada é também um pedido de socorro. Cada ac...

MORTÍFERA

Uma mulher, de vestido negro, batom carmim e unhas longas, sentou-se à mesa do bar, pediu um gim-tônica e sorriu para mim, como quem já sabe o fim da conversa.   Ela repete, debochada, cruzando as pernas, todo esse ritual, num gesto ensaiado de eternidade.   Não tem pressa. Acende um cigarro com a calma de quem já me guarda na bolsa, entre o batom e a chave da noite.   Fala baixo, chama-me de amor, e no timbre há promessa de cama — Simbolismo sepulcral de um adormecer perpétuo.   Seduz — não com o corpo, mas com esta certeza: a de que ninguém lhe escapa, nem os que a desprezam, nem os que a beijam antes da hora.   E eu, tolo, levanto o copo, brindo ao seu convite de uma vida eterna a dois.   Criado em : 15/8/2025 Autor : Flavyann Di Flaff  

OBRA-PRIMA DO DESAMOR

  Primeiro, ele riscava palavras no ar. Rabiscos sonoros, pontas afiadas: “Você não serve! Você não sabe! Você não é nada!” Era só o lápis, seco, riscando o papel frágil dela.   Depois, afinou o traço. A dor corroía por dentro. Olhos murchando. Espelho ficando opaco. A mão dele não encostava, porém, apagava tudo a seu redor.   Vieram os cortes no orçamento. Contas bloqueadas. Sapatos vendidos. Liberdade empenhada na casa de penhores do controle. Era carvão queimando nas mãos delicadas da esperança.   Por fim, o golpe. Não mais rascunho. Não mais erro de traço. Era a moldura pronta, o sangue espesso, o silêncio assinado no canto.   E chamaram de amor. E chamaram de destino. Mas era só o quadro final de uma obra que nunca deveria ter existido.   Criado em : 11/8/2025 Autor : Flavyann Di Flaff

À SENHORA DE MUITOS NOMES

  Eu nasci à beira de um rio que sussurra segredos ao mar. Era ainda menina, batizada com devoção: Nossa Senhora das Neves, fé em forma de nome, promessa em altar de pedra. Depois, vestiram-me de Filipéia para agradar a um rei que nunca me viu. Mudaram-me de novo: Frederica, como se minha alma pudesse ser enlatada nos moldes da coroa estrangeira. Mas resisti! Cresci entre tambores, missas e feiras, nas ladeiras quentes onde o barro moldava sonhos e a brisa do Atlântico espalhava liberdade. A cada nome que me davam, algo em mim se preservava. Porque sou terra de mistura — não me dobro fácil, nem me deixo apagar. Veio a República, e com ela o luto travestido de homenagem. Mataram João Pessoa — disseram que era mártir político, herói civil. Mas há quem jure que foi paixão, honra ferida, sangue derramado por ciúme e vaidade. Seja qual for a verdade, ergueram meu novo nome como um brasão: João Pessoa, sem me perguntar se eu queria esquecer que um dia fui Paraíba do Norte, nome que m...