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ALICIADORES DA REBELDIA

        Nasce no asfalto quente, entre gritos roucos e cartazes mal impressos, o suspiro inaugural de um movimento popular. É frágil, mas feroz feito chama acesa em palha seca. Ninguém lhe dá ouvidos; zombam de sua urgência, ignoram sua fome de justiça. É criança rebelde pulando cercas, derrubando muros com palavras – ferramentas de resistência.
        Mas o tempo, esse velho sedutor, vai dando-lhe forma. E o que era sopro, vira vendaval. Ganha corpo, gente, força, rumo. A praça se enche. Os gritos, antes dispersos, agora têm coro, bandeira, ritmo, batida. E aí, justo aí, quando a verdade começa a doer nas vitrines do poder, surgem os abutres engravatados — partidos, siglas, aliados, palanques — com seus sorrisos de vitrine e suas promessas de espelho, instrumentalizam o movimento para capitalizar recursos e influência política, fazendo-o perder a essência.
        Chegam mansos, como quem só quer ajudar. Fingem ouvir, mas já ditam o que falar. Dizem somar, mas já dividem para melhor comandar. Com mãos sutis, arrancam a alma da revolta e vestem-na com a farda de suas ideologias. A poesia vira panfleto, o grito vira jingle, a marcha vira passeata programada. E quem marchava por soluções, passa a marchar por padrinho. Quem sonhava com justiça, agora brada e luta por cargos e selfies com líderes narcisistas e mesquinhos.
        E o que era movimento, vira máquina de alimentar egos. O que era povo, vira peça descartável. O que era chama, vira fumaça. Transformam necessitados em lacaios, críticos em cordeiros. Com slogans de liberdade, aprisionam. Com discursos de mudança e acessibilidade, perpetuam-se no poder. Alimentam-se do suor dos seguidores de utopia e brindam com o sangue da esperança derrotada.
      E, assim, o poder segue intacto — só muda de terno. E a rebeldia? A rebeldia é amordaçada e trancada a sete chaves, bem no fundo de algum coração cansado, esperando, um dia, a hora certa de nascer de novo.

 Criado em: 5/7/2025 Autor: Flavyann Di Flaff 

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