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O CORVO

Numa tarde singular de maio, o corvo, encoberto pelas sombras dos acontecimentos, vislumbrou dois vultos a confabular segredos de alcova — ensaios de alguma traição. Permaneceu imóvel, observando e ouvindo todo aquele falar confuso, pois, da língua dos homens, nada entendia. Contudo, como se recordasse de um tempo ido, vieram-lhe à memória flashes de quando fora cativo na casa de alguém que, levado por uma superstição, o libertara. Tal lembrança não se deu por ter sido maltratado enquanto prisioneiro, mas por ter ouvido uma sonoridade e sentido um cheiro peculiares à sua memória animal.

Não tinha familiaridade com os papagaios — de semelhante, apenas o fato de pertencerem à mesma classe das aves. Mas o período de convivência imposta e contínua fizera-o distinguir aquele som e aquele cheiro específicos, pois representavam o nome de seu carcereiro e o perfume de alguém que muito frequentava aquela casa. Assim, ao ouvir novamente o som e perceber o aroma familiar, compreendeu que se tratava de alguma trama malévola contra o antigo senhor. Não lhe tinha estima, mas o reconhecia como alguém de bom senso. Prosseguiu ouvindo aquele nome e sentindo aquele perfume diversas vezes, até convencer-se de que o homem estava sendo traído por alguém do próprio círculo de intimidade. Quando tudo lhe pareceu claro, o corvo, para não ser descoberto, partiu.

Depois daquele dia, o corvo não foi mais o mesmo. Seu ser ficou angustiado, sua existência, ditada pela natureza de ave, já não fazia sentido. Algo o perturbara naquela tarde de maio, a ponto de sua consciência o inquirir sobre o que presenciara. Não entendia tal sentimento, pois não fora criado para discernir ou ter racionalidade. Mas algo o impelia a tomar partido daquele que sofria ameaças de traição — mesmo sendo humano, topo da cadeia alimentar e destruidor contumaz dos demais seres. Relutou por dias e noites mal dormidas, até que, por fim, decidiu cumprir o novo desígnio que o destino lhe impusera.

Movido por uma racionalidade inesperada — talvez um breve dom concedido pelo destino para cumprir a missão — começou a maquinar o que deveria fazer. Quando tudo estava pronto e planejado, algo o fez hesitar: a lembrança do motivo pelo qual o antigo senhor o libertara. Alguém o convencera de uma superstição sobre a presença dos corvos — aves de maus presságios — e recomendara livrar-se imediatamente daquele ser sinistro. Mesmo receoso, o homem não pensou em exterminá-lo, apenas desejou vê-lo distante. Assim o libertou. Isso o fez vacilar, pois, tendo sido libertado por representar agouros, não poderia mais surgir diante do antigo senhor sem ser enxotado. Precisava imaginar algo rapidamente, pois seu canto não seria ouvido, tampouco entendido.

— Ah, racionalidade nefasta e ácida! — lamentou. — Por que me atormentas, se eu só queria cumprir meu alado viver? O que faço agora, com a impossibilidade de cumprir o fardo imposto? Deixar-me consumir por uma angústia humana? Ó, Senhor desse desígnio imposto, socorre-me! Nesse instante, o corvo perdeu os sentidos e, num evento místico, sua essência animal saiu, pairando sem rumo.

Alguns quarteirões dali, um deserdado da dignidade humana caminhava a esmo, até que, consumido pela fome que o devorava, desfaleceu na rua insípida. Assim, o ambiente tornou-se propício para um encontro incomum: a essência que pairava sem rumo alojou-se naquele corpo, e o antes impossível, agora se tornara possível.

Ao abrir os olhos, o corvo estranhou a nova condição. Gritar foi sua primeira reação — e assustou-se, pois o grito soara humano. O que lhe sucedia? Apesar do instinto animal, percebia-se diferente. Ainda não tomara plena consciência do ocorrido, mas sabia que já não era o mesmo. Esforçou-se para conter o pânico e, aos poucos, foi reconhecendo o que se tornara. Olhando e tateando cada nova parte do corpo, compreendeu que o destino lhe ouvira as súplicas e agora lhe dava meios para cumprir a missão.

Ao observar o lugar, reconheceu a proximidade do destino que deveria seguir. Cambaleante, pois ainda se habituava à forma humana, seguiu rumo ao endereço conhecido. Tudo ao redor lhe era familiar e, ao mesmo tempo, assustador. Afinal, tudo fora antes visto de cima, nunca de tão perto. Já era final de tarde, e, recorrendo à memória animal, sabia que deveria esperar por aquele que deveria rever. Aproveitando as sombras do cair da noite, ficou à espreita.

A hora memorável chegara: um vulto surgia na rua. Seu coração acelerava; repassava mentalmente o que deveria dizer. O vulto se aproximava. Sentia a boca seca — de saliva e, pior ainda, de palavras. Justo agora, quando mais precisaria delas! Num átimo, reconhecendo o vulto, atirou-se sobre ele e, dizendo-se adivinho, proferiu os discursos que um estranho e uma senhora travaram num beco, numa sombria tarde de maio. Descreveu tudo em detalhes. O outro, já não mais um vulto, mas a figura clara do antigo senhor, ainda surpreso, olhava fixamente aquele ser de aparência esquisita: presença taciturna, olhos negros como as noites mais tenebrosas, que deixavam transparecer uma angústia incontrolável.

Recobrando-se, o homem sentiu a revelação aguçar a semente de uma desconfiança que há anos carregava de sua íntima amiga. Fechou os olhos para recordar algo. Foi nesse breve apagar de luz que o corvo aproveitou para sumir rua afora, sem esperar qualquer reação. Ao abri-los, Fernando se lembrou daquele olhar. Um calafrio lhe percorreu o corpo. Não era à toa: a confirmação daquela antiga superstição se dera ali. Um turbilhão de emoções o tomou. O que fazer agora com essas duas confirmações? Uma o assusta; a outra, rasga-lhe o peito.

Distante dali, misticamente, dá-se o retorno de duas consciências distintas: a ave cumprira apenas o destino que os humanos lhe impuseram, enquanto o deserdado fora, mais uma vez, usado por quem jamais o conheceu.

Criado em: 1/6/2013 Autor: Flavyann Di Flaff

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